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Coluna Literária

[Coluna literária] “O Auto do Frade” – João Cabral de Melo Neto

Algumas histórias de nossos grandes homens não existem a não ser nas datas festivas, nos nomes de ônibus e ruas de nossas cidades brasileiras. Tiradentes, Barão de Itararé, Zumbi, viraram apenas nomes diante de um passado distante. Para resgatar aquilo que eles têm de mais potente e o que os tornou heróis de uns, vilões de outros, há apenas os poetas. O Auto do Frade, de João Cabral de Melo Neto, resgata a história de nosso Frei Caneca e com poesia, trata de colocá-lo novamente em nossa história.

O Auto do Frade, de João Cabral, conta a história do último dia de Frei Caneca, o dia de sua morte por fuzilamento. Herói da Revolução Constitucionalista de 1824, Caneca é condenado a morte após ter sido um dos líderes da chamada Confederação do Equador. No auto, temos seu cortejo por toda a cidade de Recife, aos olhos de toda a população, como numa procissão, até ser fuzilado, finalmente, longe dos olhos do povo.

O formato da obra de João Cabral merece destaque: como num auto, o longo poema se divide em episódios. Há uma espécie de coro formado pelas gentes nas ruas, que comentam a passagem do Frei, algumas vezes condenando-o, outras enaltecendo-o, e, na maioria das vezes, tentando decifrar a lei que pretendia matar um dos mais conhecidos padres daquela terra.

O tratamento que recebe o Frei, pelo povo, é muitas vezes, como de um santo, o que lhe coloca, logo antes de morrer, em uma zona quase de mistificação, entre o corpo que ainda jaz vivo, e sua futura imagem de herói, de santo:

– Mas não há um morto, ainda está vivo:
da procissão é o santo e o centro.

Entretanto, ao mesmo tempo, o mesmo povo vai destacar como se trata de um homem de combate, de força dentro da invisibilidade de uma Pernambuco “invisível” para a corte. Destaca-se, dentro deste contexto, seu caráter humano:

É um homem como qualquer um,
e profeta não se pretende.
É um homem e isso não chegou:
um homem plantado e terrestre.

Esta característica de ver em Frei Caneca um homem plantado, terreno, muito tem a ver com o procedimento de escrita e vida de João Cabral: homem da matemática e das palavras secas e duras. Este homem que “Viveu bem plantado na vida coisa que a gente nunca esquece” pode remeter também a um procedimento de ver em Caneca uma espécie de projeção autobiográfica do próprio poeta, como no trecho:

Sei que traçar no papel
é mais fácil que na vida.
Sei que o mundo jamais é
a página pura e passiva.
O mundo não é uma folha
de papel, receptiva:
o mundo tem alma autônoma,
é de alma inquieta e explosiva.

Ver em Frei Caneca, uma espécie de poeta às avessas, um homem do mundo da vida, que interfere diretamente nas coisas, ao contrário do poeta que se vê dando voltas com seu papel “puro e passivo” potencializa ainda mais aquele padre à espera da forca. Espera que por sinal, é colocada como um ato, antes de tudo, político, de manutenção do enfrentamento de tudo que se volta contra si:

Esperar é viver num tempo
em que o tempo foi suspendido.
Mesmo sabendo o que se espera
na espera tensa ele é abolido.
Se se quer que chegue ou que não,
numa espera o tempo é abolido.
E o tempo longo mais encurta
o da vida, é como um suicídio.

O fuzilamento de Frei Caneca não é coincidência: seus carrascos negavam levá-lo à forca. Para sua morte, apenas o exército com seus tiros ouvidos à distância. Morte que, por sinal, é somente detalhe. O poema, a obra, a vida, a marcante trajetória do último dia do Frei escrita por João Cabral ultrapassam essa morte: são elas, em si, a própria vida.

luizLuiz Antonio Ribeiro é formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO, mestrando em Memória Social na área de poesia brasileira e graduando do curso de Letras/Literaturas. É adepto da leitura, pesquisa, cinema, cerveja, Flamengo e ócio criativo. Em geral, se arrepende do que escreve. Facebook:http://www.facebook.com/ziul.ribeiro Twitter:http://www.twitter.com/ziul

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