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[Para & Pensa] Surrealismo

(Imagem: A persistência da Memória – Salvador Dalí)

 

por Daniel Martinez de Oliveira

Não sei se você está familiarizado(a) com o surrealismo espanhol – franco-espanhol, para ser mais exato –, mas gostaria de recordar aqui dois de seus principais representantes, através de um traço de sua obra, sem muito me deter a roteiros ou parâmetros textuais.

Lembro, num primeiro momento, do filme “O cão andaluz”, produção levada a cabo na França do final da década de 1920, com o título original de “Un chien andalous”. Sob os auspícios de Luis Buñuel e Salvador Dalí, a obra propõe uma história sem começo, meio, ou fim, em que a lógica se constrói pela não lógica da falta de linearidade temporal e por elementos irreconhecíveis na realidade comum. Essa ausência – ou negação da lógica racional – é um dos matizes do surrealismo, que evoca uma abertura à vivência onírica e a uma tentativa de expressão do mundo dos sonhos através da arte.

O movimento surrealista se delineia sob a presença de um tema psicanalítico na apreensão dessa parcela importante do mundo, que passa a ser trabalhada, pensada e refletida de uma forma diferente, a partir da descoberta do inconsciente por Sigmund Freud. Porém, no surrealismo, dar vazão a essa realidade semiescondida não significa pensá-la ou reorganizá-la em um encadeamento lógico – que pode ganhar ares de universal.

No surrealismo, a realidade dos sonhos, os impulsos e o próprio pensamento fluem e evocam o que poderíamos chamar de os locais mais recônditos, os “continentes” distantes, como trazidos à tona pela reflexão de Aldous Huxley no (duplo) clássico “As portas da percepção/Céu e inferno”, que trata de experiências psicodélicas, incluindo inúmeras obras de arte como inspiração.

um cão andaluzClaro está, também, que a cultura e a sociedade têm peso e papel decisivos na formação do indivíduo, a que devem ser somadas as ideologias e as idiossincrasias. Por isso mesmo, na tentativa de dar vida real a um sonho, que partiu de uma experiência onírica de Dalí, “O cão andaluz” desperta e traz em si – consciente ou inconscientemente – elementos que representam a sociedade parisiense à época. Isso aparece de forma mais explícita na cena em que um homem carrega um piano que apoia dois cadáveres de burros em avançado estado de decomposição, e ainda arrasta dois frades amarrados por cordas. Há quem diga, a partir de uma análise simbólica do (semi)inconsciente, que aquele homem representa a massa; aquele piano e os burros, a burguesia; e os frades, o clero católico.

Análises psicossociológicas à parte, é plausível pensar no surrealismo como forma de expressão artística “pura”, livre de amarras estéticas, de academicismos, ou de puritanismos. Tenho grande admiração pelo movimento surrealista, por seus criadores e pelas ideias que propõem, entretanto é muito claro para mim que este tipo de expressão não pode estar “livre” das conexões com a cultura, a sociedade, a história. Não podem estar livres das “amarras”, dos estereótipos, dos preconceitos, da trajetória individual, da vida psicológica, dos processos de subjetivação e objetivação a que todos os seres humanos estamos submetidos ao vivermos em sociedade.

O surrealismo pode, sim, ser uma expressão (parcial) da realidade, pois pretende estar acima dela, englobá-la, extravasá-la e rebelar-se contra os seus grilhões, ao noticiá-la a partir de um ponto de vista não ordinário, que pode vir do inconsciente. Mas também é um fenômeno histórico, e está carregado de construções ultrarreais.

 

Daniel Martinez de OliveiraDaniel Martinez de Oliveira é graduado em história e mestre em antropologia pela UFF, onde também faz seu doutorado. Realizou pesquisas sobre a Umbanda, o Santo Daime e o Caminho de Santiago. É antropólogo e historiador do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e administrador substituto do Palácio Rio Negro (Petrópolis). Além de ser professor universitário, deu aulas de espanhol por mais de dez anos. Nascido e criado em Nova Friburgo, após três anos de trabalho no Museu de Arqueologia de Itaipu, em Niterói, adotou Petrópolis para trabalhar e viver com a família. É mochileiro de carteirinha e adora ler e escrever poesias.

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