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[Quebra-cabeças] A criança contemporânea

por Pedro Almeida

Uma das propostas desta coluna é quebrar a cabeça, rachá-la ao meio e abrir o pensamento para outras dimensões mais planas e menos normativas. Somos psicólogos que tem influência de diversos movimentos de reforma e análises que possibilitam a criação de novos sujeitos, inventores de si mesmo, de sua história e de seu futuro.

Sendo assim, caminhamos com delicadeza para evitar as paradas do pensamento, para que não haja necessidade de fazermos um remendo no meio do caminho. Não trabalhamos sobre os paradigmas do normal-patológico, do machismo-feminismo, do passado-presente, do bom-mau. Nós, ao contrário, trabalharemos no entre, nas micro-mudanças e nas diluições das fronteiras. Instalar uma micro-fissura não é tão fácil assim, é difícil e delicado desarranjar uma máquina que fabrica modos de vidas adoecidos, assim como a que fabrica modos de vidas normalizados.

Estamos no fio da navalha, caminhando no risco, na fratura de nossas cabeças. Uma posição ética e muito respeitosa as diferenças. Empatia é nossa cor predileta.

Neste texto de hoje, levanto um ponto que me interessa e faz parte de uma discussão ampla sobre a criança contemporânea. É preciso que eu assuma um risco para isso, assim como indica uma psicanalista francesa chamada Mannoni, “existe alguma coisa da ordem de um risco, da ordem de uma aventura, que vivemos com as crianças”.

Trago aqui um ponto problemático: a criação de categorias de transtornos mentais muito amplas, que facilitam o auto diagnostico através da observação dos comportamentos. Com um olhar torto, aqueles comportamentos próprios das crianças – o brincar excessivo, sem sentir frio calor ou fome, aquela agitação meio enlouquecida, um desejo desesperado por mais brincadeira, uma voz que se eleva – tornam-se exemplos de traços a serem capturados por um olhar influenciado pelas teorias médica e psicológica. Tais traços podem vir a compor para um possível grau de hiperatividade, ao passo que o tédio, a desatenção, o desinteresse, aquela borboleta que a imaginação fabrica quando a criança olha para aquela parede branca e sem graça… Estes podem compor um grau de possível de déficit de atenção.

Somando estas “evidências”, facilmente somos levados às categorias de transtornos mentais presentes no Manual Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), e o popular TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade).

Um problema comum e pouco debatido como este vem atravancando o tráfego das nossas crianças. Nós, adultos, ficamos presos a estas representações e classificamos as variações mínimas dos comportamentos com nomes de transtornos mentais. O mau exercício profissional aqui se torna um problema grave – falta hoje mais exercício clínico no lugar do cientificismo popular. Há toda uma crítica sendo feita ao TDAH, e o “criador” do transtorno disse que se trata de uma doença inventada.

Outras polêmicas como o investimento financeiro das indústrias farmacêuticas nos manuais psiquiátricos e nas associações de pesquisa são fatos que tornam a discussão ainda mais incerta. Será que altos fluxos de dinheiro podem mudar o rumo das pesquisas? É uma questão para se investigar.

No entanto, nós buscamos superar este binarismo presente entre o existe e o não existe o TDAH. Faço isto para nos levar a pensar a questão do nosso olhar, que hora cuida e hora mata.

Crianças são encaminhadas para consultórios psis (psiquiatras, neurologistas, psicólogos entre outros). Lá são examinadas e dependendo do instrumento de investigação, é possível encontrar os sintomas do TDAH. Em alguns casos receita-se psicoterapia e o uso de alguma medicação, o que pode ser uma ótima intervenção, mas não é o único procedimento. Porém, nem todos estão a salvo.

Existem várias formas de uso do diagnóstico de TDAH, assim como diversos usos da medicação e da psicoterapia. Qualquer intervenção num sofrimento requer o acompanhamento regular do cliente, atenção para as mudanças e as reações à medicação, bem como um olhar diferenciado para as mudanças possíveis através da psicoterapia. Em ambos os casos, é preciso tempo para ver e ouvir, já que sofrimento não é algo tão simples.

Os que não têm a sorte deste acompanhamento, quase sempre contam somente com a medicação. Em ocasiões são mal medicados e não possuem acesso a psicoterapia ou outras atividades. Não é qualquer acompanhamento que “dá jeito”, é preciso saber com que olho se olha a criança. Dependendo do ângulo, pode ser que esta criança nem exista, e o olhar só faça existir o transtorno – os efeitos disso são o número elevado de medicamentos combinados, ou doses abusivas que interrompam o sofrimento e o funcionamento do sintoma.

Esta interrupção não significa melhora. Por vezes, ela pode levar a intensificação da produção de sintomas, sufocando a expressão e prolongando o sofrimento. No lugar da agitação, encontramos a apatia, a falta de cores, os borrões nos desenhos e a restrição dos horizontes como possibilidade de inventar a si mesmo. Estes não são efeitos colaterais do uso inadequado da medicação e sim um efeito da interrupção do processo de expressão do sofrimento.

O sintoma tem que aparecer, ele faz parte da vida, e os conflitos das crianças devem ser sustentados pelos adultos para que ocorra um processo de maturação com os desencantos do mundo. Neste sentido, a criança aprende a lidar com afetos e os familiares aprendem com o tempo da criança. Não há só um tipo de relação pai-filho, mas sim uma ampla e extensa gama de relações, onde os pais também aprendem com o filho, assim como os psis devem aprender com as crianças.

O desenvolvimento infantil não é uma métrica, existem variações e nem todas são patológicas. Devemos oferecer condições para as crianças expressarem sua potência de superar qualquer tipo de interferência no seu desenvolvimento. No caso do TDAH, muitas questões ficam nubladas e outras silenciadas pelo modo imediatista de diagnóstico/tratamento que estamos recorrendo. É preciso não só ver as superfícies, mas se abrir para experimentar outros ângulos.

Fato é que estamos patologizando a vida e o desenvolvimento infantil – qualquer peculiaridade é transtorno mental! O clínico, o professor e a família devem ter calma para ver e ouvir – o tempo do cuidado é menos veloz que o tempo em que a gente vive.

Em alguns ângulos há muitos pontos cegos: agressividade, depressão, transtorno opositivo desafiador (TOD), autismo, o assassinato de jovens negros, o uso e abuso de drogas ilícitas, a redução da maioridade penal, entre outros pontos fazem parte de uma série de assuntos atuais sobre a criança contemporânea. Pretendemos, com o tempo do cuidado, chegar a discutir tais emergências nesta cidade. Seguimos trabalhando e pensando.

Abraço.

pedro almeidaPedro Almeida é psicólogo clínico de formação analítica, graduado na Universidade Católica de Petrópolis e mestrando em psicologia pela Universidade Federal Fluminense onde investiga as relações da psiquiatria contemporânea com a produção da demanda para atendimento infantil na Saúde Mental. Atua no Conselho Municipal de Política sobre Drogas, é companheiro da Luta Antimanicomial, assim como rastreia novas formas de exclusão social.

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