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Coluna Literária

[Coluna literária] “Descobri que estava morto” – J. P. Cuenca

João Paulo Cuenca recebeu a notícia de que a polícia havia identificado um cadáver com a sua certidão de nascimento. Escrito em primeira pessoa, esta “autobiografia” é uma investigação da morte do autor, inclusive com direito aos documentos do caso.

Com uma leitura bem dinâmica e um vocabulário muito rico, a história também é um retrato do Rio de Janeiro pré-olimpíadas, com severas críticas à cidade, abordando temas como a especulação imobiliária e a gentrificação.

“Em tempos pré-olímpicos, quem não tinha como pagar pelo Novo Rio era varrido em direção às favelas e aos subúrbios escuros e calorentos que seguiam crescendo viroticamente ao longo das linhas semidestruídas de trem nos bairros fora do cinturão olímpico”.

 

Com uma visão cínica, Cuenca também fala sobre as vaidades da vida na alta sociedade e o abismo entre ricos e pobres. Mesmo vivendo geograficamente próximos, a classe média e alta é indiferente aos que moram em locais mais pobres. É mais fácil fechar o vidro do carro no sinal para não dar esmola ou até aumentar o som da música para abafar os barulhos do tiro numa comunidade próxima do que, de fato, enxergá-los.

“Muitos de nós ali passamos a adolescência vendo pelas janelas o traçado de balas de fuzil que, junto ao eco grave dos bailes funks, era o lembrete constante de que havia outro mundo, iluminado e proibido, uma Faixa de Gaza sem muros pulsando sobre nossas cabeças. E talvez por estarmos acostumados a esse tipo de casualidade, reagimos com elegância extravagante aos balanços que não paravam de estourar pela rua.”

“Falava-se muito. Nosso aparente autofascínio escondia um espírito de competição, uma hostilidade latente. Em todas as conversas havia o desejo de mostrar-se mais feliz, mais saudável, mais adaptado, mais jovem, mais bonito, mais sofisticado e mais caro. Melhor. E sempre naquele agora um pouco adiantado ao tempo, no limiar entre o que já era e o que será, no instante anterior à adoção em massa. Na moda.”

Mas além de todo o cinismo sobre a sociedade carioca, o autor também fala sobre o imenso vazio com a sua vida. As inúmeras viagens ao exterior sem querer voltar, um relacionamento insatisfatório que é incapaz de terminar, o fato de passar mais tempo divulgando seus livros do que escrevendo-os, tudo isso é narrado de uma forma autocrítica que, por vezes, chega a ser um pouco arrogante.

 

“É raro entendermos como são frágeis os laços que nos ligam a nossa rotina, círculo social, relações de família e trabalhos. Como a nossa vida pode subitamente se transformar no quarto vazio e iluminado em que o morto deixa para trás os sapatos, ao lado da cama. Preferimos manter a crença irracional de que o desenrolar dos fatos nos levará inevitavelmente para casa, como se fôssemos moscas num pote de vidro. Mas às vezes algo acontece. Uma nuvem se move no céu e, entre o topo dos prédios em construção, o sol ilumina a rachadura que ganha espaço sob nossos pés – a crescente ruptura que nos transformará numa coleção de ausências. A queda chega e você, com certa tranquilidade, como se fosse um observador externo de si mesmo, pode ouvir o golpe. O golpe que fará você nunca mais ser quem era.”

 

No fim, toda a investigação policial culmina num desfecho inusitado, aparentemente confuso, mas que torna a leitura, de certa forma, poética. E para quem terminar com a sensação de não ter compreendido, há um “posfácio” autoexplicativo, que amarra bem a história.

Se você se interessou pelo livro, também há um filme, com direção, roteiro e atuação do próprio autor. Confira o trailer:

Marianne Wilbert

Jornalista, pós-graduada em mídias digitais.
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