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[Coluna] Inês Etienne Romeu, testemunha da Casa da Morte

por Eduardo Stotz, presidente da CMV

Lembrar para não esquecer. O lema acompanha todas as manifestações voltadas para o resgate da memória, verdade e justiça face aos crimes e violações cometidas pela ditadura militar no Brasil (1964-1985), até agora impunes em decorrência da “anistia recíproca” imposta pelos militares na chamada transição democrática. Para não esquecer tem o significado de não repetir; mas a impossibilidade de responsabilização dos algozes, retira uma das garantias da não repetição.

Os algozes na cadeia do comando da repressão desencadeada nesse período têm alegado que o resgate da memória, verdade e justiça expressa o “revanchismo” dos vencidos. A atitude não é de hoje. Em fevereiro de 1981, Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da chamada Casa da Morte, apresentou uma denúncia que repercutiu nacional e internacionalmente. A reação militar ao testemunho dela foi imediata. Alguns – a exemplo do brigadeiro Délio Jardim de Mattos, ex-ministro da Aeronáutica do governo do general-presidente João Figueiredo – admitiram a violência, a injustiça e os erros cometidos. Contudo criticaram as “supostas vítimas do passado” e se recusaram a tornar públicos os fatos pelos quais são responsáveis. O que perturba tão profundamente os militares? As evidências trazidas pelo testemunho de Inês, apresentado à Ordem dos Advogados do Brasil em 1979, seguidas, em 1981, do reconhecimento público do imóvel e de seu dono, bem como do médico militar aos cuidados do qual ficou enquanto esteve presa.

Inês permaneceu na Casa da Morte sofrendo torturas e sevícias entre 8 de maio e 11 de agosto de 1971; depois de formalmente dispor-se a colaborar com a ditadura militar, foi transferida para a Casa de Saúde Santa Maria, em Belo Horizonte. Convalescendo na clínica sob liberdade vigiada, conseguiu escrever, em 18 de setembro de 1971, o relatório de sua passagem pela Casa da Morte. Inês se entregou à Justiça Militar para ser formalmente acusada e assim, garantir a sua vida e não trair seus companheiros. Assim descaracterizava como verdadeiras todas as declarações feitas e documentos assinados por ela.

Oito anos se passaram até que o testemunho assumiu a forma de uma denúncia escrita, circunstanciada, de sua prisão, tortura, nomes dos algozes e das vítimas por meio de fatos vivenciados pessoalmente ou informados por terceiros envolvidos na Casa da Morte. O relatório inicial sofreu correções e adições “em face do decurso de tempo e de fatos supervenientes” quando Inês, aos 5 de setembro de 1979, apresentou a denúncia à Ordem dos Advogados do Brasil, que compõe o Processo No. F – CDH 017/80.

Aqui se faz necessário apontar de que maneira o testemunho de Inês pode produzir as evidências da localização do imóvel e de seu proprietário, considerando-se que se encontrava, entre 1971 e 1979, detida na penitenciária Talavera Bruce, em Bangu, na cidade do Rio de Janeiro, cumprindo pena de prisão perpétua. Esta parte da história consta no livro “Seu amigo esteve aqui”, de Cristina Chacel, publicado pela Zahar Editores em 2012. Consta que Sérgio Ferreira, primo-irmão de Carlos Alberto Soares de Freitas, encontrava-se em Londres em março de 1974, onde acessara o relatório da Anistia Internacional sobre casos de tortura e morte no Brasil. Na letra C do perfil das vítimas, identificou Carlos Alberto, como o militante que, preso em fevereiro de 1971 e assassinado em abril de 1971, teve sua morte testemunhada por Inês Etienne Romeu. Soube, mais tarde, que Inês estava presa, incomunicável, no Brasil. Apenas em fevereiro de 1978, Sérgio entrou em contato com o Comitê Brasileiro de Anistia e daí, com uma irmã de Inês, finalmente a encontrou no presídio. Ela contou a história e mais, forneceu a ele os elementos que fundamentavam a veracidade de seu testemunho: tratava-se de uma cidade na região serrana do Rio de Janeiro; o nome do proprietário da casa era “Mário”, que um agente da repressão deixou escapar; e ela o vira, ocasião em que ele lhe oferecera uma barra de chocolate; “Kill” era o nome do cão dinamarquês de “Mário”; guardou na memória o número 3254, que um torturador disse ao atender uma chamada telefônica. Esta última foi a informação crucial. Sérgio começou pelo catálogo telefônico de Petrópolis de 1976: o número pertencia a Mário Lodders. O endereço era Rua Arthur Barbosa, 120. Por meio do irmão que trabalhava no Ministério da Fazenda, conseguiu associar o número do CPF ao nome do proprietário.

Inês foi libertada em 29 de agosto de 1979. No dia 5 de setembro, registrou a denúncia na sede da OAB. Por medo, chantageada pela extrema-direita (lembre-se do atentado à bomba contra a entidade que vitimara Lyda Monteiro, em agosto de 1980), a diretoria da OAB relutou em dar seguimento à denúncia. Na manhã de 3 de fevereiro de 1981, a indecisão foi rompida pela iniciativa de Inês, com uma caravana composta por familiares de desaparecidos, advogados e jornalistas que subiram a serra e seguiram direto ao endereço da Rua Arthur Barbosa, no bairro Caxambu, em Petrópolis. Um pequeno ardil trouxe Mário Lodders para ser filmado quando Inês se aproximava e disse: “Estou reconhecendo o senhor”. Dois dias depois, ela surpreendeu Amílcar Lobo Moreira da Silva, psicanalista, segundo-tenente do Exército, em seu próprio consultório: ele acabou por admitir ter medicado Inês na Casa da Morte. Comprovava-se, então, a existência deste centro secreto de tortura confirmada por um agente oficial da repressão, conhecido como “Dr. Carneiro”.

A história não acaba aí, pois Inês Etienne Romeu resolveu mover, em fevereiro de 1981, ação declaratória contra Mário Lodders para incriminá-lo como colaborador nas torturas e vexames sofridos por ela em cárcere privado. Rejeitada a ação pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio em maio de 1982, Inês aguardou o desenrolar da conjuntura política brasileira. O fim da ditadura militar e o reconhecimento dos crimes cometidos pelo Estado em 1995, na Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, levaram-na a fazer nova tentativa em 1999. Atribuiu a Fabio Konder Comparato uma procuração para ajuizar a União Federal como Ré em ação declarando-a responsável pelos atos de cárcere privado e de tortura sofridas pela Autora. A sentença do juiz da 17ª Vara de Justiça Federal de São Paulo, proferida em 24 de novembro de 2002, reconheceu os fatos ocorridos em 1971. Foi o primeiro passo, embora indireto, para a admissão do terrorismo do Estado. Em 2003, um estranho acidente ainda não esclarecido, ocorrido no apartamento de Inês, a debilitou profundamente, não fazendo, porém, com que abandonasse a luta contra o regime militar, travada como um combate pela História. Participou ativamente dos processos relacionados à Memória, Verdade e Justiça. Inês faleceu no dia 27 de abril de 2015. Contudo, a luta prosseguiu. O Ministério Público Federal apresentou denúncia contra Antonio Waneir Pinheiro Lima, o “Camarão”, um dos agentes torturadores na Casa da Morte. O juiz Alcir Lopes Coelho, da 1ª Vara Federal de Petrópolis, além de alegar a extinção da punibilidade pela Anistia de 1979, reforçando-a pela prescrição no caso alegado, descaracterizou todas as provas relacionadas à prisão e tortura de Inês e afirmou estar provada a condenação dela pela Justiça Militar. Percebe-se, pois, a continuidade da luta política, encoberta por argumentos jurídicos questionáveis ajuntados para justificar a ditadura militar.

(Créditos:  Brasil247 e G1 José Pedro Monteiro / Agência O Dia / Estadão Conteúdo)

A Comissão é formada por: Eduardo Stotz – sociólogo e historiador, pesquisador da Fiocruz; Glauber de Oliveira Montes – historiador e professor; João Fabre dos Reis – advogado trabalhista; Maria Helena Arrochellas – teóloga e coordenadora do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade; Rafane Valoura Paixão – historiadora e Roberto Schiffler Neto – sociólogo e professor.

Endereço e acesso: Prefeitura Municipal de Petrópolis – Avenida Koeler, 260 – Centro – Petrópolis – RJ – Tel.: (24) 2246-9325. Facebook.com/cmvpetropolis – [email protected]

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