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[Coluna de opinião] Je suis da paz

Foto: Laurent Cipriani/AP

por Julian T. Probst

Para início de conversa, não sou cientista político e não me sinto capaz de analisar o tema a seguir com  a profundidade que alguns poderiam desejar. Este texto, portanto, não apresenta novidade alguma e pode soar banal para alguns. Ainda assim, me sinto compelido a escrever algumas linhas sobre o recente episódio que abalou a humanidade.

Foi com tristeza que eu soube de mais um derramamento de sangue. Dessa vez, Paris, uma das cidades mais importantes do mundo, foi sacudida pelo assassinato de 16 pessoas: na investida contra a revista, 12 pessoas foram mortas – incluindo oito jornalistas e dois policiais. Dois dias depois, quatro reféns morreram em um supermercado de produtos judaicos no leste de Paris. Com a morte dos três terroristas, agora a polícia francesa concentra as buscas nos cúmplices dos responsáveis pelo atentado.

Mais um lamentável episódio para a já sangrenta história do nosso mundo. Muito se tem discutido sobre a liberdade de expressão, afinal, os ataques teriam sido motivados por charges supostamente ofensivas sobre o profeta Maomé. Sei que a questão é muito polêmica e requer muita análise, mas eu de cara afirmo que, no meu ponto de vista, algumas charges do Charlie Hebdo foram desrespeitosas sim.  Em setembro de 2012, a revista publicou um desenho de Maomé pelado em sua contracapa. Segundo os preceitos do islamismo, Maomé não pode ser representado em imagens. Na oportunidade, a França foi obrigada a fechar embaixadas em sedes diplomáticas e escolas em mais de 20 países. Existem ainda muitas outras charges da mesma revista ridicularizando o alcorão e algumas práticas do islamismo.

Óbvio que isso não justifica os assassinatos, aliás, não há justificativa alguma para qualquer violência que exista. A liberdade de expressão é uma conquista importantíssima para os povos  (o brasileiro que o diga), mas quais são os limites do humor? Quando a arte ultrapassa o limite do bom senso e começa a ferir uma pessoa ou um povo? Quase impossível encontrar uma resposta para tais questionamentos, mas gosto de analisar os fatos com bom senso.

O ponto chave de qualquer conversa sobre esse assunto é estabelecer que nem todo islamita é terrorista, mostrando, como sempre, a burrice de qualquer generalização. Isso deveria ser ridiculamente óbvio, mas não é. Em 2010, um levantamento feito pelo instituto de pesquisa britânico YouGov indicou que metade dos ingleses relaciona islamismo com terrorismo, sendo que 58% o associam com extremismo. A conta é simples: o islamismo tem 1,8 bilhão de seguidores pelo mundo, algo em torno de 25% da população mundial.  Será possível crer em número tão grande de terroristas?

Engraçado é ver os ocidentais falando sobre fanatismo como se isso não acontecesse por aqui. Todos os cristãos já nos esquecemos das atrocidades feitas em nome de Jesus ao longo da história? Já nos esquecemos da Inquisição promovida pela Igreja Católica Apostólica Romana? Não quero apontar culpados e nem ficar remoendo o passado, mas sejamos justos. A generalização vale para os islamitas, mas não para os cristãos, né?

Acredito que, na essência, tanto o alcorão quanto a bíblia contenham ensinamentos que podem emancipar o Homem, mas, dependendo do fanatismo e da interpretação que se dê a alguns trechos dos textos ditos sagrados, é possível que ocorram os desvios de conduta que observamos. Isso, contudo, não é culpa dos respectivos profetas – nem motivo para desrespeitá-los. A responsabilidade é de alguns seguidores incautos.

Outra coisa que me incomoda demais é falta de coerência para se designar quem é ou não é terrorista. De acordo com a escritora Susan Sontag, o jornalista Richard Reeves e o linguista Noam Chomsky, figuras renomadas da cultura norte-americana, os verdadeiros terroristas são os Estados Unidos. Em entrevista à Folha de São Paulo, em 30 de janeiro de 2002, Chomsky deu a seguinte declaração: “Por centenas de anos, a Europa e seus asseclas praticaram terror em larga escala e atrocidades no resto do mundo. Em 11 de setembro de 2001, pela primeira vez, eles foram o alvo das mesmas atrocidades. Obviamente que a reação foi extremamente violenta, liderada pelos Estados Unidos e por seu parceiro júnior, o Reino Unido, ambos com vasta experiência em lidar com o extermínio de ‘raças menos favorecidas’. É preciso uma boa dose de disciplina por parte dos intelectuais do Ocidente para ‘não perceberem’ que a tal Guerra contra o Terror é protagonizada pelo país que mais foi condenado por suas práticas terroristas em instâncias internacionais como o Tribunal de Justiça Internacional e o Conselho de Segurança da ONU, em resolução que teve veto dos EUA e abstenção do Reino Unido”, afirmou.

Vale lembrar que, nos últimos cinco anos, segundo matéria do Huffigton Post, 2400 pessoas foram mortas com ataques de drones americanos, atingindo supostos membros de grupos terroristas, mas também muitos civis. A Anistia Internacional estima que, só no Paquistão, entre 416 e 951 civis, incluindo cerca de 200 crianças, foram mortos pelos drones. Com isso, começo a achar que a vida de americanos e europeus vale mais que a de pessoas do oriente médio, já que não há quase nenhum alarde da mídia e nenhum tipo de “intervenção” quando o terror é praticado contra aqueles povos.

O problema agora será a resposta dos poderosos do ocidente ao atentado. Mais sangue à vista, infelizmente. Uma coisa mais preocupante ainda já está acontecendo: ultimamente, têm ocorrido manifestações na Alemanha e outros países da Europa contra a imigração muçulmana, o que revela, perigosamente, esse sentido de vingança. Além disso, reproduzo o que disse Leonardo Boff no artigo “Para se entender o terrorismo contra o Charlie Hebbo de Paris”, de 09 de janeiro de 2015: “Na França vivem cerca de cinco milhões de muçulmanos, a maioria nas periferias em condições precárias, que são altamente discriminados a ponto de surgir uma verdadeira islamofobia”, afirma ele.

Para concluir, voltando ao assunto dos cartunistas, motivo deste longo texto, pergunto: se a redação da revista já havia sido incendiada anos atrás, não houve um pouco de imprudência  em continuar com as publicações cada vez mais desrespeitosas? Os fins justificam os meios? Se o objetivo da revista era atacar o terrorismo com as sátiras e fazer do mundo um lugar melhor para se viver, acho que perderam “o fio da meada” ao acertar também uma população gigantesca de crentes com generalizações indevidas. Isso, repito, não justifica nenhuma gota de sangue derramado, mas talvez tenha exacerbado o fanatismo de algumas pessoas, podendo haver consequências ainda mais desagradáveis daqui para a frente. Há quem diga que,  se a revista tivesse cancelado as publicações, os terroristas teriam vencido a parada. Sabe o que eu acho? Todos os lados perderam e continuarão perdendo. Qualquer guerra sempre será inglória, seja a que envolve armas, seja a que envolve intolerância religiosa disfarçada de arte.

Os franceses perderam a paz para sempre. As famílias dos cartunistas, policias e os reféns ficaram sem seus queridos. Os islamitas serão mais perseguidos ainda e olhados com o dobro de desconfiança. Mais inocentes morrerão na caça aos terroristas. E o ódio se perpetuará até o dia em que todos reconhecerem seus erros e procurarem estabelecer um diálogo. Até o dia em que os interesses políticos e econômicos forem substituídos pela real vontade de se viver em paz. Até o dia em que nos respeitarmos uns aos outros em nossas mais complicadas e extravagantes diferenças.

Espero que esse dia não demore muito.

 

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