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[Para & Pensa] Tempo de cooperação

por Daniel Martinez de Oliveira

 

Quando se fala de “natureza humana”, muitas ideias são elaboradas em relação a uma condição de bondade e afabilidade inatas ou, ao contrário, de violência e egoísmo intrínsecos. Tendemos, então, a ver os seres humanos a partir dessas duas exposições, de uma caracterização dualista, até maniqueísta, de Bem e Mal. O que parece ser, no entanto, é que a maioria dos seres humanos, ao longo de nossa história evolutiva, tem se comportado de forma egoísta em dadas circunstâncias, mas, na maior parte do tempo, tem agido de forma colaborativa.

Você pode estar se lembrando, neste momento, daquele colega egoísta, ou daquele personagem de um livro ou filme, que sempre coloca as suas prioridades à frente das prioridades do coletivo. Mas o próprio estranhamento em relação a esses comportamentos, bem como a percepção de culpabilidade que dirigimos a essas pessoas e ficções já dizem muito sobre a nossa tendência de ver aquilo que vai de encontro à noção de coletividade como algo perverso ou, pelo menos, errado.

Várias pesquisas, em áreas tão diversas quanto a antropologia biológica, a psicologia evolutiva ou a arqueologia, vêm trazendo à luz evidências muito fortes de que a história da nossa evolução física e cultural tem sido marcada por cooperação e pelo predomínio do engajamento coletivo. Os Homo erectus, por exemplo, parecem ter tido na cooperação uma marca relevante de seu comportamento social. O implemento e o desenvolvimento de ferramentas sofisticadas e a própria variedade em sua dieta podem ter levado a uma maior necessidade de dividir o trabalho e transmitir o conhecimento acumulado, bem como o cuidado dos mais jovens e a sobrevivência como um todo.

Um achado interessante – datado de 800.000 anos atrás e que vem sendo estudado há alguns anos – é o fêmur de um desses H. erectus. Está bastante danificado, provavelmente devido a uma queda ou ataque de um animal. No entanto, vê-se que se encontra “remendado”, sarado. Isso indica que outros indivíduos cuidaram do dono daquele osso, e que muito tempo e recursos do grupo foram investidos na sua recuperação, até que ele pudesse se restabelecer e, ainda que com sequelas para toda a vida, caminhar novamente.

Em contraste com humanos, podemos tomar o exemplo dos chimpanzés. Eles são bastante aparentados conosco, dentro de um ramo que engloba espécies que nos sucederam, por milhões de anos, até chegarmos – como em marcha à ré na linha do tempo – a um ancestral comum. Esses primatas, tão amigáveis e sociáveis, formam grupos e se organizam em pequenos bandos. Não obstante, ressaltam-se no seu comportamento a agressividade, a competição e as ações egocêntricas.

Nós, humanos – contudo -, temos tido a cooperação como estratégia evolutiva. Foi a partir dela que conseguimos aumentar nossa densidade demográfica e sobreviver a um mundo que se apresentava sempre hostil. Criamos elos, laços permanentes e passageiros, geramos redes de trocas, estabilidade, encontros, símbolos. E, claro, de guerra, pois também cooperamos e nos unimos para travar batalhas contra inimigos em comum. Colaboramos uns com os outros, portanto, a fim de aumentar a expectativa de sucesso do coletivo de que fazemos parte.

Apesar disso, alguns revezes se dão ante nossa tendência evolutiva à interação social, à proximidade e à troca. Neste exato momento, vivemos um desses revezes, em que muitas pessoas se veem forçadas ao isolamento. E podem se sentir deprimidas, irritadas, ao estarem “presas” em suas casas, distantes de seus amigos e parentes, como numa jaula fria e algo insensível. Porém, nesses momentos, vemos também o advento de novas formas e tentativas de aproximação social. Há pessoas em janelas e sacadas, pessoas que cantam, dançam, fazem shows, batem palmas e até panelas. Elas tentam dizer aos outros, à sua maneira, que mesmo com a distância física “estamos juntos” e vamos superar a crise.

Hoje sabemos que o distanciamento social é muito importante para a contenção da pandemia. Precisamos nos distanciar. Felizmente, temos nossas redes sociais, nossos smartphones e tablets para chats e videochamadas, nossos telefones e computadores. Podemos pedir nossas comidas por aplicativos, bem como fazer por meio deles as nossas compras de mercado e farmácia. Claro, estamos pensando em pessoas que têm o privilégio de permanecer em suas casas e os recursos em suas contas para tanto. Mas tudo isso se dá, mesmo assim, em cooperação com quem está trabalhando. Com quem está plantando, cozinhando, limpando as ruas, atendendo as vítimas e atrás dos balcões e teleatendimentos.

Em nossa “prisão semivoluntária”, temos a sensação de havermo-nos tornado ascetas, eremitas compulsórios , misantropos desafortunados. É em horas como esta que nos damos conta do quanto precisamos dos demais e de que a existência humana é impraticável em total solidão. Porque até mesmo aquele que vive em isolamento precisa de uma imensa rede cooperativa que lhe viabilize o viver, ou cultiva a convicção de que há outrem a lhe acompanhar no seu intento, em algum recanto equivalente.

Nesta hora, longe de nossos entes e amigos queridos, tudo pelo que ansiamos são conversas descontraídas, passeios ao ar livre, idas ao cinema, ou a um café, a bares, feiras, livrarias… Queremos abraçar e beijar, compartilhar histórias e risos e comidas. Esse momento chegará. Desfrutaremos, é certo, do abraço apertado do velho amigo, do olho no olho com parentes e vizinhos, do beijo de uma nova paixão, do cafuné naquele sobrinho ou primo, da beijoca na testa do vovô e da vovó. Não obstante, para isso precisaremos nos isolar, com a consciência de que fazemos parte de algo maior, de um coletivo que demanda o cuidado dos mais vulneráveis e a cooperação, para que saiam dessa junto conosco.

Enquanto você não pode reencontrar os seus, achegue-se até a janela, vá ao quintal, chame da sacada ou do portão. Veja se aquele seu vizinho ou vizinha que vive sozinho ou com problemas de saúde tem necessidade de algum amparo. Procure saber se alguém na sua rua está passando por dificuldades devido à falta de alimento ou de salário. Ou se um semelhante seu precisa de algo que você possa fazer sem a necessidade de entrar em contato físico direto, ainda que seja de um “oi”.

Esses são hábitos que podemos cultivar a qualquer momento. Somos seres cooperativos por natureza, empáticos por natureza. Eles podem e devem ser reforçados em momentos tensos como este. Isso faz parte, sem dúvida, de nosso constante processo de evolução

 

Daniel é antropólogo, historiador e escritor.

As opiniões contidas não representam a opinião do site; a responsabilidade é do autor da publicação.

 

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