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[Para & Pensa] Três livros

por Daniel Martinez de Oliveira

Há poucos anos, li alguns livros do escritor português José Saramago. Foram eles “Ensaio sobre a cegueira”, sua continuação “Ensaio sobre a lucidez” e “Intermitências da Morte”. Minha intenção era a de conhecer um pouco da obra do famoso prêmio Nobel. Claro, não me arrependi. Há algumas semanas, dediquei-me à leitura de “O diário de Anne Frank”, cuja história é amplamente conhecida, sobretudo por meio da publicação e de suas adaptações cinematográficas. E, na tentativa de me aprofundar no pensamento de Albert Camus, li, no ano passado, o admirável “A peste” e, há pouco tempo, “O estrangeiro”, também do escritor e filósofo existencialista franco-argelino.

Todos esses livros me causaram forte impacto, mas, de alguma maneira, estabeleci, por meio de três deles, um paralelo com a situação à qual estamos expostos no presente momento, e é sobre eles que quero falar. Como disse, essas leituras foram feitas em momentos diversos, além disso, seus enfoques são bastante distintos e os caminhos que tomam são muito diferentes. Entretanto, seus enredos esbarram em algumas questões que se aproximam das vivências experimentadas durante a pandemia do novo coronavírus, sobretudo com respeito ao isolamento e sobre como as pessoas podem se comportar diante de eventos de confinamento.

“Ensaio sobre a cegueira” (1995) narra uma epidemia de cegueira que acomete um local não explícito e se desenrola numa enorme tragédia sufocante e angustiante, em que as pessoas infectadas são colocadas em uma quarentena compulsória. Com limitados recursos, a suspensão do sistema social e a inabilidade da maioria em lidar com a cegueira, elas passam a agir de acordo com seus impulsos mais básicos, em que os sentimentos desempenham um papel que nos leva a questionar a bondade dos seres humanos. Trata-se, talvez, de uma metáfora sobre a necessidade de nos reposicionarmos e refletirmos sobre a lucidez e o afeto em tempos em que parecemos não enxergar muitas das mazelas que nos acompanham, naturalizadas, em nosso cotidiano.

“A peste” (1947) conta a história do isolamento de uma cidade no norte da Argélia – Orã –, após o surgimento de uma doença altamente contagiosa e letal, através do olhar de um médico que se dedica a salvar vidas durante a epidemia. Seu desenrolar mostra as misérias a que uma sociedade pode ser submetida quando se encontra sob a ação de uma praga. Diante do absurdo e da falta de controle dos fatos pelos homens e na ausência de uma motivação superior e transcendente, esses médicos descobrem na amizade e na solidariedade o valor da vida humana – em contraposição ao autoritarismo e à indiferença – como um verdadeiro sentido para a existência. Pode-se, também, interpretar a história como uma narrativa metafórica da ocupação nazista de Paris, em que a peste ideológica nazifascista operou no sentido de suplantar as liberdades em benefício de um plano maior.

“O diário de Anne Frank” (1947, lançamento) estava na minha lista de desejos de leitura havia muitos anos. Quando finalmente o li, já estávamos vivendo o confinamento imposto pela quarentena. De todas as obras aqui citadas, essa foi a que me causou maior variedade de emoções, uma vez que se trata de um diário real, escrito por uma menina nascida na Alemanha e criada em Amsterdã, entre seus 13 e 15 anos (1942 a 1944). Este é o único dos três livros que não fala de uma doença contagiosa, mas de outro tipo de enfermidade: a intolerância. Mesclada à ignorância e à maldade, a intolerância é tema de árdua reflexão pela autora, uma adolescente cheia de planos, desejos e questionamentos típicos da idade. Por ser judia, ela se viu forçada a se isolar em um esconderijo com a sua família, evitando, assim, que caísse nas mãos dos nazistas. Esse livro me marcou profundamente, sobretudo por conta da empatia que ele motiva e por se saber, de antemão, que não há final feliz. O confinamento de Anne e sua família, junto a amigos, no anexo secreto de um prédio, poderia passar a imagem de um ambiente insuportável e sufocante. Mas é uma mensagem de resiliência e esperança, posteriormente esmagada pela brutalidade, um destino comum a milhões de pessoas nos campos de concentração nazistas.

Provavelmente, esses livros causarão diferentes sentimentos e reações – e mesmo interpretações – em outros leitores. Talvez não sejam os melhores livros para se ler durante uma pandemia. Mas as mensagens que eles transmitem são libertadoras, indispensáveis, atuais e, até certo ponto, didáticas. Escolhas erradas podem levar a intensos sofrimentos, horrores, mortes e cerceamento da liberdade humana. E podem ser motivo de vergonha para as gerações futuras.

Daniel é antropólogo, historiador e escritor.

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