Concer: Maio amarelo
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Coluna Literária

[Coluna literária] “Os Subterrâneos” – Jack Kerouac

 “A arte é curta, a vida é longa.”

Jack Kerouac

A prosa beatnik é particularmente interessante, pois coloca em cheque toda uma tradição literária que costuma dividir prosa e poesia. Ao mesmo tempo, ela possui um caráter narrativo simples, direto, objetivo que busca retirar a mediação entre linguagem e realidade, enquanto tenta criar um pano de fundo poético em que a vida se realiza em palavras e sons. Ora, a mediação sempre vai existir, mas esse esforço em fazer da escrita um projeto que se ligue diretamente ao que se conhece do real, faz com que essa prosa se coloque no lugar ambivalente de prosa do mundo e invenção poética. Jack Kerouac, dentre esses prosadores, é o mais eficaz.

Os Subterrâneos, de Jack Kerouac, conta a história do escritor e poeta Leo Percepied e sua relação com Mardou Fox, uma moça metade negra e metade índia, dos subúrbios pobres de São Francisco. Ao correr da obra, Leo, espécie de pseudônimo de Kerouac, narra a progressiva perda do amor dessa moça por conta de sua conturbada vida nos submundos subterrâneos com seus amigos bêbados e drogados, todos escritores da chamada geração beat.

O que me chama mais atenção no livro é a capacidade que o autor tem de reunir afetivamente todos os detalhes que expõe. Por um lado, faz um intenso retrato de uma cidade, de uma geração e de uma comunidade ao redor de uma polis urbana caótica, e cada vez mais mercantilizada, como eram as cidades americanas do pós-guerra. Por outro, chega ao ponto de captação de um estreito fio em que se mantem todas as relações afetivas da época, baseadas sempre em um limite complexo e denso entre a realidade alucinada e os sentimentos que escapam. A perda do amor de Mardou, embora seja o relato de uma história real, é também a perda da capacidade da junção entre dois seres. Perda essa que sempre estamos correndo atrás para suprir.

O próprio Kerouac observa isso, ao tratar o próprio livro como uma espécie de “alegria de viver” contra o que ele chama de “fossa psicanalítica”, ou seja, a saída para fora, no que se pode ver com os olhos, e uma entrada para o que está encoberto e precisa ser pensando pela prosa. Pode-se dizer, a partir do que foi dito entre prosa e poesia no começo da resenha, que Kerouac faz um traço prosaico-poético ao conseguir entrelaçar essas duas instâncias que podem se multiplicar ad infinitum – fora e dentro – prosa e poesia – mundo e sensações – amor e corpo.

Os Subterrâneos foi escrito em três dias e três noites, segundo relatos, e creio que é nisto que se encontram os grandes pontos chaves da obra. Vejo nela uma intensidade do “não se pode pensar”, o que me coloca diante de cada sensação ainda latente do que vive Kerouac, ou Leo. Quantas vezes já fiz algo por beber demais e sequer me arrependi? Quantas vezes fui gradualmente cortando os laços de quem amo simplesmente por pequenas desatenções? A vida cobra caro. E a consequência é que, pelo menos no estilo beat, o mundo muda junto com as emoções:

“De repente as ruas estavam tão desoladas, as pessoas passando tão bestialmente, as luzes tão desnecessárias só para iluminar este… este mundo cortante.”

 

luizLuiz Antonio Ribeiro Formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO, mestrando em Memória Social na área de poesia brasileira e graduando do curso de Letras/Literaturas. É adepto da leitura, pesquisa, cinema, cerveja, Flamengo e ócio criativo. Em geral, se arrepende do que escreve. Facebook: http://www.facebook.com/ziul.ribeiro Twitter: http://www.twitter.com/ziul

 

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