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[Para & Pensa] Nosso país de volta…

por Daniel Martinez de Oliveira

Existe no mundo um país distante e exótico, em que tudo é muito diferente do que estamos acostumados a ver. Há alguns séculos, essa terra era ocupada por muitos povos diferentes, que tinham uma relação sustentável com seu habitat. Apesar de existirem guerras e disputas, esses povos tratavam seus oponentes com a dignidade inerente aos verdadeiros guerreiros.

Certo dia, chegaram do mar uns seres estranhos. Usavam trajes pesados e carregavam uns pedaços de pano e dois paus cruzados, os quais reverenciavam como a um totem sagrado. Falavam um idioma desconhecido e fediam. Apesar do estranhamento, as pessoas na praia manifestaram interesse em entender aqueles alienígenas. Um tempo depois, porém, logo após trocas de presentes e outros ritos de recepção, os visitantes começaram a se comportar como se fossem donos da terra, tornaram-se violentos e demonstraram grande cobiça. Quase de um dia para outro, as terras estavam divididas entre os alienígenas, que começaram a trazer alienígenas de pele mais escura, que eram usados em trabalhos forçados. Em pouco tempo, os antigos visitantes dominaram as paisagens e obrigaram todos a seguir seu modo de organização.

Passaram-se muitos anos e aquele lugar, agora totalmente modificado, tornou-se um país cheio de contradições. Tudo estava dividido de forma desigual, desde a terra e os recursos hídricos, até o acesso às benesses da civilização. Toda a população estava dividida em muitos e distintos grupos, uns muito ricos, outros medianamente ricos, muitos pobres e um sem-número de miseráveis. As pessoas de pele escura já não eram empregadas em trabalho forçado e, apesar de existirem pessoas de pele escura ricas, a maioria delas só tinha acesso a uma quantidade muito pequena dos recursos necessários à sobrevivência. As pessoas que sobraram das populações nativas se encontravam relativamente isoladas dos outros, ou tinham sido incorporadas de forma violenta à organização dos alienígenas.

Os netos dos “aliens”, por sua vez, continuavam a mandar em tudo, e tinham recursos muito superiores aos dos demais grupos. Eles decidiam sobre a divisão das riquezas, manipulavam os meios de comunicação e passavam sempre uma imagem de serem superiores, por conta de sua educação escolar, sua cor de pele mais clara, sua ascendência alienígena e seu sucesso como empreendedores.  Alguns representantes dos outros grupos, porém, se sentiam tão donos daquela terra quanto os alienígenas, pois suas famílias já estavam ali há muitos anos. E pensavam não ser justo que os recursos fossem tão mal divididos entre os habitantes do país.

Em certa altura da história recente, após um regime autoritário e alguns governos fracassados, um homem originário das camadas mais baixas da divisão econômica conseguiu o apoio da maioria dos habitantes e se tornou mandatário daquele país. Ele não queria desmantelar toda aquela organização, que para ele era natural, mas não aceitava que no país que ele governava existissem pessoas que não tinham o que comer. Colocou, então, como meta do seu governo, que cada habitante teria a condição mínima de fazer três refeições diárias, e passou a dividir bem pouco dos recursos comuns com a parcela miserável da população, predominantemente representada por pessoas sem acesso aos serviços básicos, sobretudo mulheres que criavam sozinhas seus filhos em locais áridos ou abandonados pelo poder público.

O tempo correu, e o novo governante se reelegeu. Passou então a ter como meta que, além das refeições diárias, os representantes das camadas “inferiores” teriam mais oportunidade de acesso a moradias e educação escolar. O governo passou a oferecer apoio e vagas especiais para aqueles que vinham sendo excluídos do sistema desde a chegada dos alienígenas. A partir desse momento, um grande número de pobres e até netos de antigos trabalhadores forçados de pele escura passaram a ter acesso aos níveis mais altos de educação.

Terminado o governo deste homem, ascendeu ao cargo uma mulher, fato que deixou descontente uma grande parcela da população, que era dominada por uma visão pessimista sobre o sexo feminino. A mulher era muito competente, mas sua capacidade de articulação política era fraca, e sua posição contrária em relação a atos ilícitos era ferrenha. Ela começou a escarafunchar as condutas dos demais personagens políticos do país, e sua atitude revelou uma enorme lista de corruptos, inclusive dentro de seu próprio grupo político. Apesar de sua visão de economia ser bastante conservadora, seu governo ainda dava atenção às mazelas dos grupos “inferiores”.

Preocupados com o espaço tomado pelas camadas “inferiores” e com a destituição das vantagens históricas que tinham, os grupos “superiores” partiram para o ataque ao governo, classificando-o de comunista e tentando virar o jogo, ao apontá-lo como único responsável pela corrupção naquele país. Apesar de serem os maiores representantes da corrupção (ativa e passiva), os grupos “superiores” precisavam mentir, pois o que aquele governo fazia representava uma ameaça à hegemonia dos donos da terra, ou seja, os netos dos alienígenas.

Armou-se uma grande farsa. Manipulou-se a informação. A justiça foi comprada. As camadas mais reacionárias, e antigas beneficiárias exclusivas das vantagens históricas, se rebelaram, pois não aguentavam mais ter de conviver em pé de igualdade com os pobres e os descendentes dos antigos trabalhadores forçados de pele escura. Mesmo sem saber o que é fome, começaram a bater panelas vazias, vestirem-se com camisetas esportivas nas cores da bandeira do país e saírem às ruas, por onde antes só andavam em seus veículos particulares. O fato de terem estudado mais anos que as outras camadas não fazia deles pessoas mais bem informadas ou inteligentes. Ao contrário, não percebiam como eram manipuladas pelos meios de comunicação, já que só estavam interessadas em recuperar sua “superioridade” tida como inerente, agora sob ameaça de extinção.

A grande mídia, interessada na derrubada daquele governo que desestabilizava a ordem “natural” das coisas, investia milhões de dinheiros nacionais para salvaguardar seus interesses e fazer com que o sistema voltasse ao que era antes. Controlada como era pelas famílias dos antigos alienígenas, mostrava seu descontentamento com o fato de o “status quo” estar indo por água abaixo. Tentou de tudo para provocar a queda do governo e incutir em todas as camadas da população o ódio por ele, o que animou camadas “superiores” a revelar seu ódio também pelas camadas “inferiores”.

Muita gente saiu às ruas, em defesa e contra o governo. Os dois lados se diziam “o povo”. Os netos dos alienígenas de pele clara; aqueles cujos avós eram os alienígenas de pele escura; os que eram tão misturados que sua ascendência chegava a ser infinita (a maioria). Os netos dos antigos povos da terra não se envolviam tanto nesses confrontos, pois já estavam acostumados a perder desde a chegada dos alienígenas.

Houve muitas brigas. Sangue escorreu pela terra, manchando as bandeiras e as ruas. Viu-se fogo. Foi um grande tumulto. Os defensores da ordem, armados com porretes e sprays de veneno, atacaram os menos amparados. Os alvos preferenciais eram os netos dos alienígenas de pele mais escura. Ouviram-se gritos. Ouviram-se tiros. Palavras de ordem foram proferidas. Muitos foram os ataques pessoais, as amizades desfeitas e as famílias divididas.

Tentou-se encarcerar o antigo governante, acusado de ter recebido muitos presentes. Diante da tentativa do atual governo de incorporá-lo às suas hostes políticas, um homem da lei tentou desmoralizá-lo, fazendo uso de espionagem. Alguns homens da lei o defenderam, outros tentaram barrá-lo. Enquanto isso, as ruas estavam tomadas de netos dos alienígenas de pele mais clara, conclamando toda a nação para defender o seu lado, para ter o “seu” país de volta, tomado à força naquele dia, à beira da praia, quando seus avós chegaram de outro mundo.

Daniel Martinez de OliveiraDaniel Martinez de Oliveira é graduado em história e mestre em antropologia pela UFF, onde também faz seu doutorado. Realizou pesquisas sobre a Umbanda, o Santo Daime e o Caminho de Santiago. É antropólogo e historiador do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e administrador substituto do Palácio Rio Negro (Petrópolis). Além de ser professor universitário, deu aulas de espanhol por mais de dez anos. Nascido e criado em Nova Friburgo, após três anos de trabalho no Museu de Arqueologia de Itaipu, em Niterói, adotou Petrópolis para trabalhar e viver com a família. É mochileiro de carteirinha e adora ler e escrever poesias.

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