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[Coluna] A ditadura militar na perspectiva histórica: memória, verdade e justiça

por Eduardo Stotz, presidente da CMV

Concluímos, com esta postagem, a série dedicada ao estudo do período da ditadura militar no Brasil. Doravante nossa preocupação será a de esclarecer aspectos abordados ou analisar momentos e situações dentro desse período.

É possível perceber, na leitura das matérias publicadas na coluna “Memória e Verdade”, um fio narrativo que busca estabelecer uma conexão dos fatos e processos e, de modo subjacente, uma explicação dos mesmos. Para o leitor(a) interessado(a) em aprofundar esta compreensão remetemos ao estudo das publicações disponíveis no portal da Comissão Municipal da Verdade, especialmente As faces do moderno Leviatã, Memória coletiva dos militantes de esquerda e A questão democrática entre os paradigmas liberais e a proposta marxista,  e de outros autores, com destaque para a coletânea A Miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo, organizada por Demian Bezerra de Melo.

Apresentamos a seguir uma síntese dos principais aspectos da ditadura militar contidos nos ensaios publicados no blog <Acontece em Petrópolis> sob os ângulos da memória, verdade e justiça que pautam a nossa função enquanto Comissão Municipal da Verdade.

1 – O golpe militar desfechado em 1º. de abril de 1964 derrubou o governo de João Goulart para impedir que a radicalização política das classes trabalhadoras ameaçasse os interesses da burguesia. O movimento militar foi justificado, nos termos do Ato Institucional no. 1 de 9 de abril de 1964, porque aquele governo se dispunha a “bolchevizar o país” e facilitava “infiltração comunista” na administração do Estado nacional. O Alto Comando das Forças Armadas evidenciava, mediante esta linguagem anticomunista, a falência da política de colaboração de classes no momento em que o movimento de massas dos trabalhadores da cidade e do campo começava a escapar do controle do esquema político “populista”, encarnado na aliança entre o PTB e o PSD.

2- A instauração da ditadura militar – e sua permanência durante 21 anos – correspondeu a uma crise profunda do capitalismo no Brasil que atravessava a sua primeira crise cíclica, exigindo transformações na estrutura agrária, dominada pelo latifúndio, no sistema bancário, mediante sua concentração e centralização, etc. Já percebidas pelo governo Goulart, quando foram denominadas de “reformas de base”, tais mudanças foram retomadas de outra forma pelos sucessivos governos dos generais-presidentes, entre 1964 e 1985. Sob a ditadura militar, porém, as reformas foram encaminhadas tendo por base um brutal e continuado aumento da taxa de exploração dos trabalhadores, conhecido genericamente como política de arrocho salarial.

3 – O golpe militar instaurou uma ditadura aberta e indireta da burguesia, como se refere Marx O 18 Brumário de Luis Bonaparte, para destacar a renúncia dessa classe de exercer seu poder político direto, por meio de eleições, sobre o conjunto da sociedade. A ditadura foi exercida pelos militares em nome da burguesia contra os trabalhadores, implicando o desmantelamento das organizações de massa como Ligas Camponesas, União de Estudantes, a intervenção em sindicatos operários, a prisão das esquerdas e mesmo das lideranças ligadas ao governo deposto. A ditadura militar foi um regime ou forma de Estado no qual os conflitos de classe e entre diferentes frações de classes tinham de expressar-se no interior do Alto Comando das Forças Armadas e de seu sistema decisório e de informação. Contudo, a ditadura militar manteve uma fachada democrática, dada a complexidade de interesses de classe em jogo num país como o Brasil.

4 – A formação, consolidação e crise da ditadura militar constituem um processo que passou por distintas fases, em decorrência das contradições sociais, inclusive com as suas próprias bases sociais de sustentação na burguesia. Contudo, a recuperação da economia a partir do segundo semestre de 1968 permitiu ao Alto Comando editar o AI-5, acabar com as veleidades da oposição liberal em pretender a abertura política e concentrar ainda mais o poder. Impôs-se a tarefa de liquidar as organizações de esquerda que haviam se reorganizado depois do golpe; o cerco repressivo na primeira metade dos anos 1970 resultou no desmantelamento destas organizações.

5 – Em decorrência, a memória social das lutas ocorridas nos anos 1966 a 1968 foi enfraquecida e suplantada pela redução da vida social às oportunidades de trabalho assalariado de milhões de trabalhadores oriundos do Nordeste e das pequenas cidades do interior do Sudeste que se integraram no mercado interno em expansão nesta década, sem qualquer possibilidade de participação política. A censura sistemática na imprensa e o apoio midiático à ditadura sob a bandeira do “Brasil Grande” e “Ame-o ou deixe-o” reforçaram a imagem de um período de “paz social” e silenciaram as vozes contraditórias.

6 – A crise da ditadura militar em meados da década de 1970 foi inicialmente uma cisão na própria burguesia a respeito dos rumos da política econômica, depois ampliada pela oposição dos estudantes e pelos trabalhadores. A ditadura não foi derrubada, acabou por um acordo do Alto Comando das Forças Armadas com a oposição liberal estruturada na Aliança Democrática, tendo à frente Tancredo Neves e José Sarney. A eleição indireta desses representantes civis à presidência da República e a transformação do Congresso Nacional em Constituinte configuram os processos de uma transição controlada que resultou na anistia recíproca e no obstáculo ao julgamento dos crimes cometidos pela ditadura.

7 – O julgamento dos crimes cometidos pela ditadura militar tem sido, portanto, bloqueado pela anistia recíproca consagrada na Constituição de 1988, reiterada na decisão do Supremo Tribunal Federal adotada frente a recurso da OAB em outubro de 2010. Os crimes continuam, assim, impunes, apesar das provas materiais reunidas por iniciativas de ex-presos políticos, pelo Grupo Tortura Nunca Mais, pela Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos e, desde 2012, pelas comissões nacional, estaduais e municipais da verdade, assim como pelas comissões de trabalhadores e do movimento sindical, de camponeses, relacionados aos indígenas e a outras questões temáticas, como as de gênero, religiosa, etc. O empenho em provar os crimes, abrir os arquivos do Estado, conseguir o julgamento dos agentes da repressão e identificar os restos mortos dos desaparecidos políticos demonstrado por estas iniciativas encontrou respaldo no Grupo de Trabalho “Justiça de Transição” do Ministério Público Federal. Mas os próprios limites legais que desobrigam o Estado a assumir sua responsabilidade diante dos crimes impõem o entendimento de que a ditadura militar não é um capítulo encerrado na História do Brasil e de que, portanto, sob novas condições e formas, a luta continua.

A Comissão é formada por: Eduardo Stotz – sociólogo e historiador, pesquisador da Fiocruz; Glauber de Oliveira Montes – historiador e professor; João Fabre dos Reis – advogado trabalhista; Maria Helena Arrochellas – teóloga e coordenadora do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade; Rafane Valoura Paixão – historiadora e Roberto Schiffler Neto – sociólogo e professor.

Endereço e acesso: Prefeitura Municipal de Petrópolis – Avenida Koeler, 260 – Centro – Petrópolis – RJ – Tel.: (24) 2246-9325. Facebook.com/cmvpetropolis – [email protected]

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